A reforma trabalhista e a regulamentação do “bico”

A reforma trabalhista foi defendida com o propósito de ser a alavanca necessária para a retomada do crescimento econômico do Brasil, por meio da flexibilização das relações de trabalho. Tal flexibilização seria sinônimo de modernidade.

Mas o que pode ter de moderno em regulamentar o “bico”, juridicamente denominado de “contrato de trabalho intermitente”?

 

É difícil extrair algo de moderno em uma reforma que deforma conceitos básicos construídos ao longo de décadas no direito do trabalho.

 

O contrato intermitente será aquele no qual a prestação de serviços alternará períodos de trabalho e de inatividade.

Todos os trabalhadores podem ter períodos em que estão à disposição do empregador, mas sem realizar serviços, seja porque esse período de inatividade faz parte da dinâmica do negócio, como no caso do transporte aéreo, rodoviário ou coletivo urbano, ou porque uma máquina quebrou, uma venda não se concretizou e a produção não se fez necessária ou um determinado dia da semana ou do mês é menos propício para as vendas no comércio.

 

O período à disposição sempre foi considerado como tempo de trabalho pois a ausência de atividade integrava o risco do negócio do empreendedor. Isso muda com a reforma.

Ocorre que o conceito de empregador não mudou, de modo que continua sendo aquele que assume a gestão e os riscos do negócio.

 

Se o empregado não interfere na gestão e nem compartilha os lucros do empreendimento, também não pode ser penalizado com a transferência dos prejuízos, como ocorre quando se submete ao “bico”.

O contrato de trabalho intermitente viola normas internacionais ratificadas pelo Brasil que garantem o direito à remuneração digna e à existência decente, além de afrontarem a Constituição, pois “bico” nenhum não garante trabalho e muito menos renda mínima para assegurar alimentação, moradia, saúde, educação, previdência e transporte.

 

Dirão os defensores da maximização dos lucros empresariais, maquiada de modernidade, que o trabalhador não precisa ficar dependente desse empregador, pois pode ter vários contratos de trabalho nesse formato.

Ora, e como o trabalhador irá se planejar? Quantos vínculos intermitentes precisará manter? Poderá ter outras atividades ou sua vida resumir-se-á a aguardar convocações para trabalhar em qualquer dia e horário? E se não puder responder ao chamado no prazo porque está trabalhando para outro contratante, ainda que tivesse disponibilidade no período proposto? E se ao final do mês não obtiver o suficiente para pagar o aluguel, a luz e as demais contas, que não admitem intermitência?

 

A regulamentação do “bico”, ainda que com o pomposo nome de contrato de trabalho intermitente, é um retrocesso inadmissível.

 

Caberá ao Poder Judiciário e ao Ministério Público a árdua tarefa de barrar o avanço dos escusos propósitos dos defensores dessa lei, que de moderna só tem o discurso.

Cirlene Luiza Zimmermann é Procuradora do Trabalho (MPT-AM/RR)

Artigo originalmente publicado no Jornal A Crítica no dia 19/09/2017

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