Seminário sobre Trabalho Escravo no Amazonas discute PLS que altera a caracterização do crime

Redução da definição legal do que é o trabalho escravo preocupa grande parte dos atores de combate a essa mazela social

“Quantas vezes - este é meu trabalho diário – não escutei de trabalhadores/as que nos procuram que já não aguentam mais beber água do açude barrento onde o gado também bebe; de comer carne apenas quando conseguem uma caça; de dormir amontoado no pequeno barraco de lona, sem paredes, ou mesmo no curral, repleto de embalagens de agrotóxicos e outros “Mata tudo”. Quantas vezes não presenciei eles pedirem a Deus para não chover, para que não tenham que passar mais uma noite no molhado?”.

O trecho citado foi retirado da carta pública redigida por Brígida Lopes, assistente social e educadora da Campanha De Olho Aberto Para Não Virar Escravo, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), a qual foi apresentada pelo Frei Xavier Plassat, coordenador da referida campanha, durante o segundo dia do seminário “Trabalho Escavo no Amazonas: estratégias para o enfrentamento”, realizado no auditório da sede do Ministério Público do Trabalho no Amazonas (MPT 11ª Região), nesta sexta-feira, 11.

A carta é um manifesto contrário à proposta de redução da definição legal do que é trabalho escravo no Brasil, que está para ser votada no Congresso Nacional. Caso aprovado, o Projeto de Lei do Senado (PLS 432/2013), de autoria do senador Romero Jucá – PMDB/RR, ficarão descartados como elementos caracterizadores deste crime a imposição de condições degradantes e de jornada exaustiva de trabalho.

A questão foi um dos temas discutidos nas mesas de debates ao longo do segundo dia de programação do seminário. Um dos painéis discutiu o conceito de trabalho escravo. Segundo o auditor fiscal do Trabalho Márcio Leitão não há como restringir o conceito de trabalho escravo ao que era no passado.

“Até mesmo auditores fiscais do trabalho quando iam participar pela primeira vez do grupo móvel de fiscalização não conseguiam visualizar o trabalho escravo porque estavam presos há uma realidade que não existia mais. A realidade ficou no passado e o conceito também evoluiu. Vivemos hoje outro momento histórico, sob o amparo de uma Constituição Federal que tem como metanorma o princípio da dignidade da pessoa humana. Não há como ainda se pensar em restringir a caracterização do trabalho escravo àquele onde a restrição de liberdade, estar acorrentado, era um atributo essencial”, afirmou o auditor.

Para o procurador do Trabalho Jeibson Justiniano ainda há uma saída, na hipótese de aprovação da PLS. “Podemos enfrentar a problemática, caso venha a ser reduzido o tipo penal, sob o ponto de vista que estará havendo um retrocesso social. Então, se a redução do tipo vier a ser aprovada estará sendo violado o princípio da vedação do retrocesso social.”

O procurador explicou que, em outra ocasião, o pacto internacional de San Jose da Costa Rica foi utilizado em controle de convencionalidade para que não fosse mais aplicada a prisão civil por dívida no Estado brasileiro. À exemplo deste caso, pode-se entender também que a alteração legislativa com relação ao trabalho escravo viola o princípio da vedação do retrocesso social e que há um problema de convencionalidade. Portanto, seria possível, assim como descrito na decisão do Supremo Tribunal Federal à época, dar uma eficácia paralisante aos efeitos da legislação brasileira.

Outra questão que também norteou o debate foi a relação cultural com o trabalho escravo. Ouve-se muito sobre a dificuldade de enfrentamento ao trabalho análogo ao de escravo por tratar-se de uma questão já enraizada na cultura dos trabalhadores. Para o Frei Xavier Plassat, essa “cultura” só serve para uma minoria se aproveitar do trabalhador. “É uma manobra sutil de se aproveitarem do desconhecimento e vulnerabilidade das pessoas para explorá-los. E isso não faz parte da cultura do povo explorado, mas sim do próprio explorador. Se a legislação nos ensina que a exploração fere aos direitos básicos dos trabalhadores, não podemos chamar isso de cultura”, disse.

Nas mesas de debate que discutiram as experiências, as perspectivas e os desafios no combate ao trabalho escravo no Amazonas também foi, por vezes, frisado que não se busca combater as atividades econômicas em que o trabalho escravo vem sendo encontrada. E sim, reorganizar a forma como a atividade vem sendo praticada a fim de que não seja mais utilizada mão de obra exploratória de trabalhadores. A ideia é tornar a atividade adequada e regular para todos os que dela se beneficiam.

No momento das considerações finais, o procurador do Trabalho Renan Kalil, mentor do seminário, relembrou a importância de que seja dada continuidade às tratativas para formalização da criação da Comissão Estadual para Erradicação do Trabalho Escravo, a qual deve criar uma articulação entre as entidades competentes envolvidas no combate ao trabalho escravo e a própria sociedade civil organizada, para que sejam unificados os esforços e estratégias de ação, de modo a não apenas reprimir os casos existentes, como também prevenir essa mazela social.

Dados do Trabalho Escravo no Amazonas

Segundo dados coletados por meio do sistema do Ministério Público do Trabalho, chamado MPT Digital, as atividades econômicas mais recorrentes nas denúncias relacionadas ao trabalho análogo ao de escravo no Amazonas são as extrativistas como, por exemplo, a extração de madeira e, em seguida, as atividades em fazendas e agroindústrias.

Além de Manaus, que figura no topo da lista de denúncias, os municípios com maior número de casos são Lábrea, seguido de Manicoré e Boca do Acre.

Atualmente, existem 55 procedimentos ativos no MPT relacionados à temática, dos quais 22 possuem ações ajuizadas na Justiça do Trabalho. E mais 9 procedimentos encontram-se em acompanhamento com Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) firmado.

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